quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Mundo Espírita Há 75 anos – ANO II – Abril De 1934

O Julgamento De Jesus

Ruy Barbosa

 

No julgamento instituído contra Jesus desde a prisão, uma hora talvez antes da meia noite de quinta-feira, tudo quanto se fez até o primeiro alvorecer da sexta-feira, subesequente, foi tumultuario, extra-judicial e atentatorio dos preceitos hebraicos. A terceira phase, a inquisição perante o sinedrim, foi o primeiro simulacro de fórma judicial, o primeiro acto judiciario, que apresentou alguma apparencia de legalidade, porque ao menos se praticou de dia. Desde então, por um exemplo que desafia a eternidade, recebeu a maior das consagrações o dogma juridico, tão facilmente violado pelos despotismos, que faz da santidade das fórmas a garantia essencial da santidade do direito.

O próprio Christo dellas não quiz prescindir.

Sem auctoridade judicial o interroga Anaz, transgredindo as regras assim na competencia, como na maneira de inquerir; e a resignação de Jesus ao martyrio não se resigna a justificar-se fóra da lei: "Tenho falado publicamente no mundo. Sempre ensinei na sinagoga e no templo, a que afluem todos os judeus e nunca disse nada ás ocultas. Por que me interrogas? Inquire dos que ouviram o que lhes falei: esses sabem o que eu lhes houver dito". Era o apello ás instituições hebraicas, que não admittiam tribunaes singulares, nem testemunhas singulares.

O accusado tinha jús ao julgamento collectivo, e sem pluralidade nos depoimentos criminadores não podia haver condemnação. O apostolado de Jesus era ao povo. Se a sua prédica incorria em crime, deviam pulular os testemunhos directos. Esse era o terreno juridico. Mas, porque o filho de Deus chamou a elle os seus juizes, logo o esbofetearam.

Era insollencia responder assim ao pontifice Sic respondes pontifici? Sim, revidou Christo, firmando-se no ponto de vista legal: "Se mal falei, traze o testemunho do mal, se bem, porque me bates?"

Anaz, desorientado, remette o preso á Caifaz. Este era o summo sacerdote do anno. Mas, ainda assim, não tinha a jurisdição, que era privativa do Conselho Supremo. Perante este já muito antes descobria o genro de Anaz a sua perversidade politica, acomselhando a morte de Jesus, para salvar a nação. Cabe-lhe agora levar a effeito a sua propria malignidade "cujo resultado foi a perdição do povo, que elle figurava salvar, e a salvação do mundo, em que jamais pensou".

A illegalidade do julgamento nocturno, que o direito judaico não admittia nem nos litigios civis, aggrava-se então com o escandalo das testemunhas falsas, aliciadas pelo proprio juiz, que, na jurisprudencia daquelle povo, era especialmente instituido como o primeiro protector do réu. Mas, por mais falsos testemunhos que promovessem, lhe não acharam a culpa, que buscavam. Jesus calava, Jesus autem tacebat. Vão perder os juizes prevaricadores a segunda partida, quando a astucia do summo sacerdote lhes suggere o meio de abrir os labios divinos do accusado.

Adjura-o Caifaz em nome de Deus Vivo, a cuja invocação o filho não podia resistir. E diante da verdade, provocado, intimado, obrigado a se confessar, aquelle, que a não renegára, vê-se declarar culpado do crime capital; "Reus est mortis". Blasphemou! Que necessidade temos mais de testemunhas? Ouvistes a blasphemia". Ao que clamaram os circumstantes: "É réu de morte". Repontava a manhã, quando á sua primeira claridade se congrega o sinedrim. Era o plenario que se ia celebrar. Reunira-se o Conselho inteiro, in universo concilio, diz Moscos. Deste modo se dava a primeira satisfação ás garantias judiciais. Com o raiar do dia se observava a condição da publicidade. Com a deliberação da assembléa judicial o requisito da competencia. Era essa a occasião juridica. Esses eram os juizes legais. Mas juizes que tinham comprado testemunhas contra o réu, não podiam representar senão uma infame hypocrisia da justiça. Estavam mancomunados, para condemnar, deixando ao mundo, o exemplo, tantas vezes depois imitado até hoje, desses tribunaes, que se conchavam de vespera, nas trévas, para simular mais tarde, na assentada publica, a figura official do julgamento.

Sahia Christo, pois, naturalmente condemnado pela terceira vez. Mas o sinedrim não tinha o jus sanguinis, não podia anunciar a pena de morte. Era uma especie de Jury cujo veridictum, porém, antes opinião jurídica do que julgado, não obrigava os juizes romanos. Pilatos estava, portanto, de mãos livres, para condemnar, ou absolver. "Que accusação trazeis contra este homem?" Assim fala por sua bocca a Justiça do povo, cuja sabedoria juridica ainda hoje rege a terra civilizada.

"Se não fosse um malfeitor, não to teriamos trazido", foi a insolente resposta dos algozes togados. Pilatos, não querendo ser executor num processo de que não conhecera, pretende evitar a difficuldade entregando-lhes a victima.

"Tomae-o e julgae-o segundo a vossa lei". Mas, supplicam os judeus, bem sabes que "nos não é licito dar a morte a ninguem". O fim é a morte, e sem a morte não se contenta a depravada justiça dos perseguidores.

Aqui já o libello se trocou. Não é mais de blasphemia contra a lei sagrada que se trata, senão de attentado contra a lei politica. Jesus já não é o impostor que se inculca filho de Deus: É o conspirador, que se corôa rei da Judéa. A resposta de Christo frustra ainda uma vez, porém, a manha dos calumniadores. Seu reino não era deste mundo. Não ameaçava pois, a segurança das instituições nacionaes, nem a estabilidade da conquista romana. "Ao mundo vim", diz elle, "para dar testemunho da Verdade. Todo aquelle que fôr da Verdade, ha de escutar a minha voz". A Verdade? Mas "Que é a Verdade?" Pergunta, definindo-se o cynismo de Pilatos. Não cria na verdade, mas a da innocencia de Christo peneirava irresistivelmente até o fundo do sinistro dessas almas onde reina o poder absoluto das trevas: "Não acho delicto a este homem", disse o procurador romano, sahindo outra vez ao meio dos judeus.

Devia estar salvo o innocente. Não estava. Á opinião publica faz questão da sua victima. Jesus tinha agitado o povo, não ali só, no territorio de Pilatos, mas desde Galiléa.

Ora acontecia achar-se presente em Jerusalem o tetrarcha da Galiléa, Herodes Antipas; com quem estava de relações cortadas o governador da Judéa. Excellente occasião, para Pilatos, de lhe rehaver a amizade, pondo-se, ao mesmo tempo de boa avença com a multidão inflammada, pelos principaes dos sacerdotes. Galiléa era o forum originis do Nazareno. Pilatos envia o réu a Herodes, lisongeando-lhe com essa homenagem a vaidade. Desde aquelle dia um e outro se fizeram amigos, de inimigos que eram. Et facti sunt amicii Herodes et Pilatus in ipsa die; nam antea inimici erant ad invicem. Assim se deconciliam os tyrannos sobre os despojos da justiça.

Mas Herodes também não encontra, por onde condemnar a Jesus e o martyr volta sem sentença de Herodes a Pilatos, que reitera ao povo o testemunho da intemerata pureza do justo. Era a terceira vez que a magistratura romana a proclamava. Nullam causam invenio in homine isto ex his, in quibus eum accusatis. O clamor da turba recrudesce.

Mas Pilatos não se desdiz. Da sua bocca irrompe a quarta defeza de Jesus: "Que mal fez elle? Quid enim mali fecit iste? Cresce o conflicto, acastelam-se as ondas populares. Então o proconsul lhes pergunta ainda: "Crucificareis á vosso rei?"A resposta da multidão em grita, foi o raio, que desarmou as evasivas de Herodes: "Não conhecemos outro rei, senão Cesar". A esta palavra o espectro de Tiberio se ergueu no fundo da alma do governador da provincia romana. O monstro de Caprea trahido, consumido pela febre, crivado de ulceras, gafado da lepra, entretinha em atrocidades os seus ultimos dias.

Trahil-o era perder-se. Incorrer perante elle na simples suspeita de infelicidade era morrer. O escravo de Cesar, apavorado, cedeu, lavando as mãos em presença do povo: "Sou innocente do sangue deste justo".

E entregou-o aos crucificadores. Eis como procede a justiça que se não compromete. A historia premiou dignamente esse modelo da suprema covardia na justiça. Foi justamente sobre a cabeça do pusilanime que recahiu antes de tudo em perpetua infâmia, o sangue do justo. De Anaz a Herodes o julgamento de Christo é o espelho de todas as deserções da justiça, corrompida pelas facções, pelos demagogos e pelos governos.

A sua fraqueza, a sua inconsciencia, a sua perversão moral crucificar o Salvador, e continuam a crucifical-o, ainda hoje, nos imperios e nas republicas de cada vez que um Tribunal sophisma, tergiversa, recua, e abdica. Foi como agitador do povo e subversor das instituições que se imolou Jesus. E, de cada vez que ha precisão de sacrificar um amigo do direito, um advogado da verdade, um protector dos indefesos, um apostolo de idéas generosas, um confessor da lei, um educador do povo, é esse, a ordem publica, o pretexto que renasce para exculpar as transacções dos juizes tibios com os interesses do poder.

Todos esses acreditam, como Pontio, salvar-se, lavando as mãos do sangue, que vão derramar, do attentado que vão commetter. Medo, venalidade, paixão partidaria, respeito pessoal, subserviencia, espirito conservador, interpretação restrictiva, razão de estado, interesses supremos, como quer que te chames, prevaricação judiciaria, não escaparás ao ferrete de Pilatos! O bom ladrão salvou-se. Mas não há salvação para o juiz cobarde!

 

Ruy Barbosa

(extrahido da obra Ruy Barbosa. Primores. Publicação dirigida por Laudelino Freire. – Ed. da Revista de Lingua Portugueza – Rio de Janeiro de 1932, á paginas 139-145)
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